terça-feira, novembro 23, 2004


A alergia

De pequenino tudo tentaram para o tentar. Muitos e belíssimos livros infantis habitavam o seu quarto de criança. Muita história delirante o adormeceu, com dramatizações carregadinhas de onomapoteico suspense. Muita identificação subliminar com as suas aventuras favoritas encantava o dia a dia... e agoooora, será que o herói de meio palmo vai conseguir escapar dos braços da ama pegajosa e salvar o cachorro Pimpão da vizinha maléfica que o fechou na garagem?

Debalde: as letras não o preenchiam e só aos nove anos aprendeu a juntá-las.

Já rapazote, a aversão manifestava-se com proporcional intensidade: nem mosqueteiros, nem Verne, nem - oh desespero! – a bd mais rafeira lhe picavam o fastio. Nas prateleiras, bisonhos, os volumes suspiravam de abandono.

Terminou o secundário - com razoável aproveitamento e boa verbalização - sem alguma vez ler um livro. Gesta heróica para que muito contribuíram familiares palavrosos, que lhe implantavam cultura por via endoauricular. Sim, que ele nunca havia passado da página 44 de Os Maias, mas discursava fluentemente sobre a influência do trauma do registo de mãe incógnita na obra de Eça...

Como na faculdade ler é actividade extra-curricular, a vida universitária sorriu-lhe e a carreira profissional floresceu, radiosa. Exemplo vivo da superação da adversidade de uma alergia tão intestina e virulenta, é hoje um brilhante gestor, com absoluto domínio sobre as letras. Ou antes, sobre as livranças.

segunda-feira, novembro 22, 2004


A beata vai nua



Entre vagas menos alterosas, boiou até nós uma opinião que, apesar de não ser recente, é muito actual:

“Nos anos 20 havia um objectivo revolucionário acima de todos os outros. Criar o homo sovieticus, bom marxista e camarada obediente, são no corpo e salvo na mente. Era preciso destruir o russo genético. Tirar-lhe a memória, educá-lo de novo e habituá-lo para sempre. O espírito totalitário, seja o dos nazis pela raça ou o dos comunistas pela ideia, é muito mais que um sistema político. Impõe um código de comportamentos. Prático e coercivo. Trata de recriar o homem à imagem e semelhança de uma utopia. Os piores esbirros da história prometeram um mundo de criaturas perfeitas. Um mundo que nunca chegou nem podia chegar.

O vício esgotou o verbo dos moralistas. Eles eram os profissionais do bem e do mal e tinham legitimidade para definir os perigos da alma e da carne. Mas os tiranos tornaram o vício um problema de Estado. Discutem a sua liberdade decretam a respectiva proibição. Eles têm a absurda pretensão de mudar a vida, alterar a natureza e fabricar o homem novo.

(…) O tabaco, como outrora o álcool, é a última vítima das campanhas purificadoras. A Europa de Bruxelas, sempre pronta a legislar sobre tudo e sobre nada, moveu fundos e emitiu normas. Os eurochatos uniram-se contra o cigarro. Portugal tem a mania de ser pioneiro. Um membro do Governo ficou célebre por considerar nojentos os fumadores. Vejo agora um ministro da Educação, sorridente e proteico, assinar um convénio, cujo objectivo, confesso e escrito, é o seguinte: “criar uma geração de não fumadores”. Nem Mais, nem menos. Os sovietes também se propunham coisas deste quilate. E não fumavam Marlboro.

São irrelevantes as contradições de um Estado que é puritano no convénio e que polui nas fábricas. Nem sequer a ironia de um Governo que presume o ar puro e lucra com a Tabaqueira. O que está em causa também não tem que ver com o apartheid do fumo. Pela lógica da protecção ao outro, é compreensível a separação de lugares e de recintos. Pelo dever de informação, é até aceitável a advertência dos perigos. Já é hipócrita a punição do tabaco pelo imposto – inventam-se razões mansas para cobrir um mero desejo de receitas. Nada disto, porém, é essencial. O facto é que o poder, além de legislar, aconselhar e tributar, pretende, agora, o direito de criar uma geração e definir um dos seus predicados: não fumará. Lamento dizê-lo: é o Estado democrático a praticar fascismo cívico.

Tão mau como o Estado-providência é o Estado-madrinha. Parece que Odete Saint-Maurice é chefe do Estado e que Fernando Pádua chegou a primeiro-ministro. São exemplos de uma infantilização do pensamento social. O ministério tomou então a seu cargo a assistência moral ao povo. Como se a democracia, em vez de ser uma escolha entre modelos de sociedade, fosse uma escolha entre modelos de vida. O Estado parte de dois princípios: a sociedade é perversa em si e o poder sendo conhecedor do bem, deve torná-lo obrigatório.

(…) É o resultado clássico deste tipo de operações de limpeza na cidadania. O homem novo, salvo raríssimas excepções, sempre foi mais parecido com o escravo do que com o filho de Deus.”


Paternidade do escrito: Paulo Portas, conforme TomarPartido.

Bem dizia a Prima: Cambada!

Parabéns à Prima.

domingo, novembro 21, 2004


Seja excêntrico (1)



Seja empresário em Portugal e concorra com o seu projecto na API.

terça-feira, novembro 16, 2004


A sorte das cartas



Encontrámo-nos, aqui há oito dias, por mero acaso.

Chocaram-se a minha pasta e a tua perna e, quando nos voltámos para pedir desculpa, éramos nós!

À genuína surpresa seguiu-se a falsa banalidade do "não acredito, estás na mesma", como que para emprestar a ideia de que as marcas do tempo não tinham alterado o âmago da nossa cumplicidade.

Afinal, éramos nós, adolescentes, outra vez – mais peso, menos cabelo – apenas com mais notícias para pôr em dia.

Cinco minutos para tomar café, claro que sim. Meia hora depois – ambos no limite do nosso tempo – tínhamos, entre trejeitos e gargalhadas, recordado o essencial e revelado, em traços largos, o que, no entretanto, o futuro de então nos tinha preparado… nada de muito complicado, nada de muito surpreendente, nada de muito imprevisível.

Um almoço ou jantar? Quarta não podias, sexta era-me impossível. Segunda, então.

E, até lá, fui relembrando – em versão "franciscana" – o nosso pretérito:

O grupo de estudos, a destreza na condução em asfalto de adrenalina, o riso partilhado, a carícia da música que nos unia os corpos numa imobilidade quase tântrica, o arrufo de ciúme, a entrega na reconciliação, as inseguranças do "estás agora mas amanhã já não", os argumentos e contra-argumentos num solilóquio que me entediava para além do ponto de silêncio, a carta de ruptura que te fiz ler com a advertência da inutilidade de quaisquer comentários, o grupo de estudos menos confortável, o final do ano, o percurso diverso pontilhado por notícias cada vez mais esparsas e, finalmente, o esquecimento.

No restaurante trocámos os sabores desse tempo, temperados pela ternura que a distância põe nas coisas. E foi doce a sobremesa desse reencontro feliz.

Quando nos trouxeram o café – única paixão que verdadeiramente nos unira – tiraste do bolso um envelope velho e dobrado.

- Sabes o que é isto?
- O que é?
- A tua carta, lembras-te dela?

Reconheci, naquele papel gasto, a minha letra, então mais arredondada e certa, tão certa como a perspectiva que tinha determinado o ponto final da razão de sermos… entre mais disparates, pois claro.

- Que vergonha. E guardaste isto?

À minha pergunta risonha respondeste com um sorriso quente. E – acompanhando com a linguagem corporal adequada – disseste, num quase murmúrio:

- Guardei. Agora já não preciso dela. É tua.

Naquele momento o cenário mudou.

Já não éramos nós. Tu eras tu. Eu era eu.

E não foi só náusea, nem só pena, nem só desprezo que senti. Foi tudo isso e qualquer coisa de impreciso mas profunda e vexantemente triste.

A grotesca tentativa de manipulação, utilizando uma pirosa carta guardada – entre os caixotes de mudança das nossas vidas – como oportuna centelha para apaziguares o "rebound" do teu segundo divórcio?

Get a life!

A minha sensibilidade conta com inúmeras áreas de piroseira, mas nenhuma delas chega aos calcanhares da pobreza de "costureirinha da Sé".

Julguei que soubesses, agora sei eu…

Sei que me não entendes,
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás
,

Por isso jogaste tão mal aquela carta… a passagem que não resulta no jogo em que se esteve desatento às vozes.

Agradeci-te e, discretamente, rasguei a carta.

Senti o grito de raiva no gelo dos teus olhos.
Desculpa, mas teve que ser…

OUVE-ME!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh’alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!
Ai os enredos,
Os medos,
E as lutas em que medito,
Quer dê, quer não dê por isso,
Sem descansar
Um momento…!

Quem sofre – pensa; e o tormento
Não é sofrer, é pensar.
O pensamento
Faz engolir o vómito de fel…
Ouve! se sou cruel
Neste papel queimado
Dos incêndios da minh’alma,
É da raiva de que embalde
Te procure dizer sem falsidade
Coisas que, ditas, já não são verdade…


Percebemos agora a sorte das cartas?

A cristalização de uns quantos farrapos de vida que – seja guardada, rasgada ou queimada – se remete, necessariamente, para aquele tempo intangível, que atravessámos mas nunca foi nosso.

segunda-feira, novembro 15, 2004


Cambada!

Pois é... só desculpas: muito trabalho, fins de semana no rafting, montanhas de trabalho, bebés novos, maratonas de trabalho, crises familiares, maremotos de trabalho, viagens exaustivas, já para não mencionar as avalanches de trabalho. Que raio de guardadores de factos vocelências me saíram... custa lá tirar cinco minutos às vossas ocupadas sestas para botar faladura sobre a apoteótica reuniãozinha, a desgraceira na Costa do Marfim, o campeão finalmente in situ, a entidade reguladora inaugurada em espírito... e Fallujah, sim, ou não está aberto o debate sobre quanto vale um soldado americano em limpeza por metro quadrado? Pronto, as parangonas não vos inspiram... venham de lá as pequenas histórias do quotidiano, as impressões de viagem, o picaresco, caramba, até aceito sagas sobre roturas em sistemas informáticos, prazos impossíveis, infra-estruturas inexistentes, a crise do nabo na agricultura de sequeiro, um pneuzito furado, uma foto do cachorro, anything goes, mas não me deixem o raio do blog uma semana em branco, seus fiteiros!

Bom, vou ali debelar uma cordilheira de trabalho. Espero que a diatribe matinal vos tenha feito ver a luz, ou soltado o fogo do dragão, para usar uma símile mais pertinente. Sinceramente, em época de vacas escanzeladas, até admito uma metáfora sobre rugidos de gatinhos habitualmente afónicos.

Vá lá...

terça-feira, novembro 09, 2004


No hospital

Meia leca austero, bem bojudinho e vigoroso, convalesce da cirurgia com o ar vagamente vexado de quem foi traído por uma vesícula ainda dentro do prazo de garantia. O sobrolho severo e a quietude composta de uma surdez incipiente realçam o distanciamento com que se submete às vicissitudes do internamento e à indignidade da avaria. Sim, que setenta e três anos de vida não fazem mossa em apêndice de qualidade.

À sua volta borboleteiam, em afãs mitigadores, cinco filhos, respectivos consortes e meia grosa de netos adultos. Todos – mesmo os afins, por bizarro acaso de osmose cromossomática – se lhe assemelham: rodinhas baixas, rotundos, severos e industriosos. Em todos se sente a preocupação da descoberta da falibilidade de um esteio muito amado. E a todos o bojudinho, qual ilha de calma dispéptica, trata de forma algo ausente: de facto, de facto, ele nem está ali, quanto mais incapacitado, quanto mais precisando de ajuda.

A atitude muda subtilmente quando a prole lhe traz a mulher de visita: pronto desperto, endireita as costas e abre o peito ufano, exsudando acuidade. Ela tem noventa e um anos e é bonita, muito bonita. Ficam sentados lado a lado em torrente de comunicação táctil e silenciosa. Há sempre entre ambos um contacto de ombro, de braço, ou de coxa, uma área de fusão que torna o par na unidade em que o orgulho dele nela e a certeza dela nele se encontram e confundem.

E quando a hora da visita termina, fica uma certeza no ar: o mundo passou ao modo de suspensão. Ich bin ein Screen Saver...

segunda-feira, novembro 08, 2004


Eixos, desleixos e seixos




O ajuntamento foi de quilate, infinitamente superior às 200mg de unidade-peso. Obviamente que nada bafejava a precioso ou a preciso, afinal de contas as prerrogativas são isso mesmo, últimos redutos. E não há quase nada mais piadético do que preparar, esfalfar e, exaustivamente, planear espontâneas tertúlias. Pior, só mesmo exercitar piadolas ao espelho e contá-las aos amigos.

Não sei se marchava: ossos e tinta têm grande efeito plástico, mas são pouco dados ao compasso da arte. À arte de gracejar. Até porque engajar com factos tem o seu quê; com políticos, o seu quê de menos; com ambos, a sua estaleca. E debruar uma "nega" por consciência democrática e liberdade de expressão é chalaça de espelho que não se compadece com um alegado livro por acabar.

Quanto ao resto – do painel, entenda-se -, um deles revelou tudo: arraia miúda...!
Gosto de gajos sucintos, que se definem no acto, que não se enredam no meio e, que à pala de aparecerem, suspiram de encanto, por eles próprios.

Má língua...?
Não. Refugos salivares.

Uma ressalva: PM

terça-feira, novembro 02, 2004


Variações sobre um sorriso



Esta semana – como em todas – aconteceram coisas boas que quero registar, antes que o resultado das eleições norte-americanas me retire a disposição de mencionar estes prazeres.

1º - A proposta musical do Xavier.

Não me fez bem à saúde porque não me queixo dela, mas ajudou a reforçá-la e, sobretudo, permitiu que o seu enlevo emprestasse mais sentido e emoção a todos os outros registos;

2º - O ramo de rosas que recebi, sem cheiro nem motivo;

3º - A forma frontal como a Vieira defende uma amiga.

É muito bonito;

4º - A multidão que apinhou a Rua da Judiaria.

Perante esse gesto de espontaneidade colectiva, o anfitrião acolheu os convivas com a gratidão humilde que os grandes homens sabem ter.

É lindo;

5º - A justificação que o Robin Williams deu para o "não tão mau desempenho" de Bush nos debates com Kerry:

"É que eles ofereciam-lhe uma banana por cada resposta certa";

6º - As Cartas Abertas do Comendador Marques de Correia, na "Única" do Expresso:

Tem o Rui Gomes da Silva toda a razão quando fala em cabala. Explica os motivos e o seu "modus operandi" no Jardim do Tabaco, onde se distribuem as notícias. E termina com um "Agora desculpa, mas tenho que tomar os comprimidos."

É saudável esta ironia do Henrique Monteiro;

7º - A onda de solidariedade ao Do Portugal Profundo.

E não digo mais, porque "aos costumes" não é preciso dizer mais "nada";

8º - A indignação – que subscrevo – perante o silêncio do PSL, expressa quer pelo Pé de Meia, quer pelo Roncinante d'O Jumento.

Eles têm razão. O PSL está em falta na única coisa que faz bem: fazer-nos rir.

O Jumento está, ainda, de parabéns pelo facto de celebrar, hoje, o seu primeiro aniversário. Desejamos que "conte muitos", porque nós contamos com mais;

Abri com chave de prata e termino com chave de ouro:

9º - O melhor texto de prosa poética que li nos últimos tempos:

José de Faria Costa – que surpreende em cada faceta que revela – partilha connosco, onde "a vida vivia", um momento de si.

Belo, indizivelmente belo… só lendo.