Encontrámo-nos, aqui há oito dias, por mero acaso.
Chocaram-se a minha pasta e a tua perna e, quando nos voltámos para pedir desculpa, éramos nós!
À genuína surpresa seguiu-se a falsa banalidade do "não acredito, estás na mesma", como que para emprestar a ideia de que as marcas do tempo não tinham alterado o âmago da nossa cumplicidade.
Afinal, éramos nós, adolescentes, outra vez – mais peso, menos cabelo – apenas com mais notícias para pôr em dia.
Cinco minutos para tomar café, claro que sim. Meia hora depois – ambos no limite do nosso tempo – tínhamos, entre trejeitos e gargalhadas, recordado o essencial e revelado, em traços largos, o que, no entretanto, o futuro de então nos tinha preparado… nada de muito complicado, nada de muito surpreendente, nada de muito imprevisível.
Um almoço ou jantar? Quarta não podias, sexta era-me impossível. Segunda, então.
E, até lá, fui relembrando – em versão "franciscana" – o nosso pretérito:
O grupo de estudos, a destreza na condução em asfalto de adrenalina, o riso partilhado, a carícia da música que nos unia os corpos numa imobilidade quase tântrica, o arrufo de ciúme, a entrega na reconciliação, as inseguranças do "estás agora mas amanhã já não", os argumentos e contra-argumentos num solilóquio que me entediava para além do ponto de silêncio, a carta de ruptura que te fiz ler com a advertência da inutilidade de quaisquer comentários, o grupo de estudos menos confortável, o final do ano, o percurso diverso pontilhado por notícias cada vez mais esparsas e, finalmente, o esquecimento.
No restaurante trocámos os sabores desse tempo, temperados pela ternura que a distância põe nas coisas. E foi doce a sobremesa desse reencontro feliz.
Quando nos trouxeram o café – única paixão que verdadeiramente nos unira – tiraste do bolso um envelope velho e dobrado.
- Sabes o que é isto?
- O que é?
- A tua carta, lembras-te dela?
Reconheci, naquele papel gasto, a minha letra, então mais arredondada e certa, tão certa como a perspectiva que tinha determinado o ponto final da razão de sermos… entre mais disparates, pois claro.
- Que vergonha. E guardaste isto?
À minha pergunta risonha respondeste com um sorriso quente. E – acompanhando com a linguagem corporal adequada – disseste, num quase murmúrio:
- Guardei. Agora já não preciso dela. É tua.
Naquele momento o cenário mudou.
Já não éramos nós. Tu eras tu. Eu era eu.
E não foi só náusea, nem só pena, nem só desprezo que senti. Foi tudo isso e qualquer coisa de impreciso mas profunda e vexantemente triste.
A grotesca tentativa de manipulação, utilizando uma pirosa carta guardada – entre os caixotes de mudança das nossas vidas – como oportuna centelha para apaziguares o "rebound" do teu segundo divórcio?
Get a life!
A minha sensibilidade conta com inúmeras áreas de piroseira, mas nenhuma delas chega aos calcanhares da pobreza de "costureirinha da Sé".
Julguei que soubesses, agora sei eu…
Sei que me não entendes,
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás,
Por isso jogaste tão mal aquela carta… a passagem que não resulta no jogo em que se esteve desatento às vozes.
Agradeci-te e, discretamente, rasguei a carta.
Senti o grito de raiva no gelo dos teus olhos.
Desculpa, mas teve que ser…
OUVE-ME!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh’alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!
Ai os enredos,
Os medos,
E as lutas em que medito,
Quer dê, quer não dê por isso,
Sem descansar
Um momento…!
Quem sofre – pensa; e o tormento
Não é sofrer, é pensar.
O pensamento
Faz engolir o vómito de fel…
Ouve! se sou cruel
Neste papel queimado
Dos incêndios da minh’alma,
É da raiva de que embalde
Te procure dizer sem falsidade
Coisas que, ditas, já não são verdade…
Percebemos agora a sorte das cartas?
A cristalização de uns quantos farrapos de vida que – seja guardada, rasgada ou queimada – se remete, necessariamente, para aquele tempo intangível, que atravessámos mas nunca foi nosso.